quinta-feira, novembro 26, 2009

morar

Queria contar-te uma coisa, sabes?... É. Mas para isso preciso de remontar às ervilhas que comi aqui no Verão e que, para desgosto póstumo de Exupéry, me deixaram estragada. Cresci então uma ervilha na barriga. Trago-a comigo, e ela cresce. É uma ervilha estragada – é aquela que me avariou.

Hoje sento-me num canto, mesmo debaixo da estante dos Ésses (Rodrigues dos Santos e Saramago espreguiçavam-se escandalosamente ao longo das prateleiras mais baixas) e colho um Silva. Uma Gota de Chuva, dizia ele. Uma gota de chuva. E só bastou.

No caminho para a continuação da minha gestação, esbarrei com O’Neil, que estava sentado mesmo a seguir à esquina da ala do Camões lírico. Falou-me da vertigem que nós éramos, a vertigem entre o real e o sonho, disse ele, com aquele olhar de quem semeia mas não olha para onde. E já o Vergílio tentou, quando era vizinho, morava no 5º andar, lembro-me tão bem... Falava de relógios e de velhos e coisas do género. Tinha de repetir sempre o que ele dizia para poder perceber ao menos o encadeamento das palavras, até que emudeceu.

Mas só aquela estava estragada. Só aquela me estragou. Só aquela não traguei, tendo deixado de poder tragar. Era intratável. O infame!

É isso. Desculpa. Estou estragada. Um homem morto e desgostoso tem a culpa. Ele é que não arrumou antes de partir, e eu tropecei naquele quarto... Eu farei, a sério que sim. Fazer sempre a cama antes de ir.

quinta-feira, novembro 19, 2009

Sorvo.

Hoje há nova Jerusalém.
Lisboa. Lisboa. Além-mar, Cristo Rei. Um sorvo só.
Senta-te. Não chores. Visita-a. Esta de casas e casinhas, que tem o Martim Moniz e o Castelo de São Jorge, e o Tejo e os pássaros e os eléctricos e a ponte. Chega. O princípio é vir, é ir, é chegar.
Porque amar é estar sempre chegando.

quarta-feira, novembro 18, 2009

Rápido.

Caminhava mais rápido que sempre.
Já não sabia de cor tudo o que precisava de saber para chegar mais rápido, porque já tinha tudo tão entranhado desde o primeiro dia de sol que agora não precisava de pensar no caminho e podia usar esse tempo para pensar no resto, no tudo, no que estivesse a seguir, no resto da vida.
E não havia tempo a perder, porque não haveria nada a ganhar em perder esse tempo.
Nada, por certo. Por certo...
E ia, e vinha, e ia, e vinha. E tudo era assim, e tudo funcionava. Um ir e um vir. Um descer e um subir. Um chamar e um fugir. O poder de se poder desembrulhar o papel de parede sem saber propositadamente se não se está a embrulhar-se nele. E embrulhar e desembrulhar e embrulhar e desembrulhar e embrulhar e desembrulhar e dissecar e descobrir a ponta, e depois o resto, do acre do piquenique.
Quem anda só chega a horas. Mas só se traz a si nas mãos.

sexta-feira, novembro 13, 2009

7:31

Só mais um bocadinho, va lá. É só mais um bocadinho.
Quero ficar aqui e nunca mais sair. São agora 7:30, 7:30, 7:30 da manhã, e é necessário, estritamente necessário abandonar o quentinho, o quentinho aqui...este, isto. Isto, isto, isto, isto. É este isto que é bom, e daqui a nada já se foi. Porque saí e está frio lá fora. Porque saí e vai deixar de ser quentinho, aqui. Meu. Meu. Muito meu.
Depois? Depois beberemos o que ficou. O chá arrefecido e aquecido. Que ainda é chá, aquele chá, mas já não sabe ao mesmo.
Não! Aqui! Isto, milhões de vezes isto! Milhões de vezes a infantilidade, a inutilidade de querer agarrar um segundo para sempre... Tenho medo do escuro, do escuro de me esquecer do sabor deste quentinho! Do escuro, aquele escuro, de me assombrar a memória de que um dia arrefeceu. Só mais um bocadinho...
Sim...?
.
7:31.
[escuro]

sábado, novembro 07, 2009

Puxa!

Não é ser exigente. É não ser contraproducente.
É essencial que as coisas funcionem. As flores que fazemos dão fruto e semente. E as sementes germinam e o ciclo recomeça. Sem nós! E só assim - já sem nós - funcionam em facto e verdade.
Falta. Ainda há muita coisa urgente por fazer, e todos sabemos isso. O ponto não está aí. É que, para além do que é urgente, ainda há coisas importantes a fazer. O que é urgente alguém fará. E isto, isto é importante. Verdadeiramente.
Não se trata de exigir, mas de ser.

quarta-feira, novembro 04, 2009

BANG BANG YOU'RE DEAD

(Josh) O que é isto? Quem está aí?

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(Michael) Então fazes da tua cara uma máscara.

(Katie) Uma máscara que te esconde a cara.

(Mattie) Uma cara que esconde a dor.

(Jessie) Uma dor que te come o coração.

(Emily) Um coração que ninguém conhece.

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Texto William Mastrosimone
Tradução Sofia Torres de Carvalho

segunda-feira, novembro 02, 2009

Isso e couves.

Era cortar-lhes as cabeças, espetá-las em paus, plantá-los ao sol até secar. Ou então deixarmos de ser idiotas, que também serve e é ligeiramente mais económico.