quarta-feira, dezembro 02, 2020

Fluxo

Rio Radovna


Olho o calendário. Os registos. Faço contas para trás.

Onde é que eu falhei? O que é que não percebi? Será que me esqueci de registar? Será que não senti, não soube interpretar os sinais que estavam lá? 

Voltar aqui é como perder uma batalha. É um dia de frustração, de insucesso, de comparação com pessoas bem sucedidas. Às vezes não é o dia todo, pode ser só um minuto. Às vezes é um dia, e o dia seguinte. Às vezes é todo um mês circunspecto e assombrado por registos e possíveis eventuais erros de caderneta.

Mais um ciclo que correu como um rio que não volta para trás.

quarta-feira, janeiro 18, 2017

Para atravessar contigo o deserto do mundo

Preciso de achar que é este o projecto de felicidade que me está guardado.
Não tenhas medo que eu fuja: eu acho que estamos certos. Eu é que preciso de saber mais sobre isso.
Como que um caminho que temos de fazer para ter uma pequena garantia.
Se sabemos onde está a verdadeira alegria, porque não tentar perceber se a vamos receber, investir nela? Saber se temos de mudar algo? Se era bom aprofundar alguma capacidade? Fazer alguma coisa nova juntos?
Se é uma decisão para sempre talvez devesse ser bem tomada…não há oportunidade para errar. Há oportunidade para crescer. Porque não agarrá-la?



terça-feira, maio 03, 2016

For ever, dizias tu.

Sabes o que é isso, meu palhaço?
Porque é que eu tenho de viver esse para sempre sozinha?...

"Porque eu amei-te como se fossem eternos a glória, a luz e o brilho do teu ser.
Amei-te em verdade e transparência e nem sequer me resta a tua ausência."

E eu fecho os olhos para te ver.
Para te ter, ouvir de novo.

Passam cinco anos sem o teu abraço, e eu continuo a respirar-te sempre. É como se tivesses sido um sonho que me invadiu de vez.
Encontra-me, muda-me então. Assim, sempre. Para sempre.

terça-feira, julho 14, 2015

"É bom. É bom."

Vamos almoçar aqui. Disse ele com uma voz grave, decidida, como quem decreta. Como quem faz questão. Com aquela voz linda que ele tem.
Gostava de um dia ser tão acolhedora assim. Do alto dos meus 87 anos, receber catraios assim, de braços abertos. Confiar neles, oferecer-lhes o que tenho. O melhor que tenho.
Ele fica a olhar, sorriso aberto, quase pueril. As montanhas a perder de vista, o rio que canta debaixo da ponte, ou cada folhinha de uma hera que se abraça a uma árvore perto. Decifra-os, toca-lhes, examina-os. Conta histórias, faz sugestões.
Vejo-o num limbo entre a genialidade do homem que conheço de sempre e um estado semi-demencial, difícil, incerto e em decadência, também. Olho-o e, nalguns momentos, não consigo deixar de pensar que este homem não vou voltar a ver, porque mesmo que o veja, estará um bocadinho pior e depois outro bocadinho pior e... Mais e mais longe do senhor que conheci.
Olho-o e enche-me o coração que me receba sempre assim. Já comeste? Faz-me sempre ficar. Olho-o e vejo a irmã dele, catraia num corpo antigo, com o mesmo sonho no rosto ao olhar aquela mesma serra, há anos atrás. Olho-o e vejo a irmã dele, hoje sombra, hoje dependência, hoje só rasto de algo já esquecido. Mas também sorriso pueril, dependendo das marés.
Eu vou convosco. Se me quiserem, claro. “Mas tem a certeza? Não fica cansado?” Ele olha-me por cima dos óculos. “Olhe que assim fico preocupada…” Ele segue à minha frente.

Muito boa surpresa. Gostei muito que viesses aqui.

quarta-feira, maio 20, 2015

De pessoas para pessoas.

Hoje é o dia dele. O dia de testar um sistema de eye-tracking, depois de quase um ano sem conseguir controlar um computador. Nem falar sozinho. 
Dois médicos, uma neuropsicóloga, dois terapeutas ocupacionais, uma terapeuta da fala, os pais, o irmão, a senhora do eye-tracking, ele e eu, todos no mesmo gabinete, todos concentrados na capacidade dele para controlar a geringonça. Pedem-lhe que faça várias coisas: escreva palavras, seleccione ícones, feche janelas, abra programas...
No fim tem um rol de perguntas, claro. Mas naquele tempo todo ninguém se lembrou de lhe perguntar se tinha dúvidas.
Vou respondendo e perguntando, uma a uma. A minha última resposta foi "I won't be here, because my internship will end before that, but they will find out the best communication device for you and I'm sure you'll have it. And use it. Like, perfectly. Any more doubts?"
Diz que sim com a cabeça. Seguro o quadro de comunicação que fiz há mais de um mês para que ele pudesse falar com...quem o quisesse ouvir. Vou escrevendo no papel, letra a letra, o que ele vai seleccionando.
"Don't go."

terça-feira, maio 12, 2015

O Algarve é uma cereja.

Fecho os olhos de repente, sem parar de andar.
O calor e a claridade forçam-me a entorpecer ao de leve enquanto saio do ambiente climatizado.

Quanto ganhamos ao fim de quatro anos de estudo? E de dezasseis?
Eu ganho uma multidão incontável.

Professores, amigos, colegas, orientadores. Obstáculos, desafios, reforços, notas. Aquisições, raciocínios, competências. Muitas horas de procrastinação.

Utentes incompreensíveis. Mas depois audíveis, visíveis. E interpretáveis, e competentes e válidos. E eu aqui, a esforçar-me por construir pontes. Tão débeis, às vezes! Por arranhar o muro até conseguir ver para lá dele. Que tola...

Eu, este nada, esta patanisca no meio dos bacalhaus a sério, a tentar ajudar alguém.

"Ana, tem a certeza de que é isto que quer fazer para o resto da vida? Ainda vai a tempo..."

Eu coro. Sim. É isto.

quinta-feira, fevereiro 26, 2015

Vertigem e sonho ou a comunicação na afasia.

Chegou como uma trovoada. Ameaçava, nah, nada disso. Ameaçava outra vez, vá calma, não vai ser nada. E depois, um ribombar vertiginoso.
É isto. Tem de ser isto.
A comunicação liga-nos de tal forma a nós próprios e aos outros que sem ela nos parece que não somos nada. Que nada vale a pena.
Encontrar no outro alguém que se ligou a um pensamento que eu tive. Encontrar no outro uma tradução para o que eu não consigo dizer. E depois uma solução, ou uma explicação, ou um caminho a percorrer. Alguém que me deixa errar, que percebe que eu errei, que de facto tenta perceber o que eu quero dizer. Alguém para quem eu não estou atrás de um muro.
Trovejava, trovejava. Trovões, chuva, clarões. Começou a ser perigoso conduzir tão depressa. Só conseguia pensar que tenho de aprender o mais possível, saber o mais possível, procurar o mais possível. Não conseguia ouvir mais nenhum pensamento no meio daquela confusão. Saber o quê, saber porquê, saber como.
Alguém com quem eu já não estou atrás do muro.
É isto que eu quero fazer sempre.