Um retrato de uma mulher empedernida, em cima da lareira. Impenetrável. Espantosa. Bocados de tinta descansam em paz na porcelana de uma lindíssima e aterrorizadora face.
A casa respira ao ritmo do leve ruge ruge de uma portada esquecida, de uma ripa do chão que se espreguiça, de uma porta que balança: de cá para lá; de lá, para cá: de cá para cá.
Só, completamente só, jaz o morto à meia luz de uma lua que se escapa por entre as frinchas da janela. O candeeiro, lá fora, antiquíssimo e belo, morreu há muito tempo, desgostoso. Não era a gargalhada estrondosa e cheia que fazia as paredes tremer, nem a cumplicidade sofrida ou a faculdade de doar que deixavam aquele cheiro. Não era o respeito, nem o silêncio construído a trinta e quatro mãos que pintavam, ainda no ar, cada nota do piano. Era o próprio ser. Era em si mesmo alegre, em si mesmo santo, em si mesmo dom. Perfeito...
Um retrato de uma mulher empedernida, em cima da lareira. Impenetrável. Espantosa. Se hoje alguém comungar do leve ruge ruge dos candelabros e reposteiros à moda passada, do cheio ao tempo que não passa (e que não traz rugas à fina procelana), e às longas bancadas de cozinha, olha-a e não a vê. Não sente, nunca, o podre morto jazido. Mas ela fica. Erigida muito acima das nuvens, a fortaleza permanece sempre. O morto, pura e simplesmente, desapareceu.