domingo, outubro 24, 2010

O grupo.

Um retrato de uma mulher empedernida, em cima da lareira. Impenetrável. Espantosa. Bocados de tinta descansam em paz na porcelana de uma lindíssima e aterrorizadora face.
A casa respira ao ritmo do leve ruge ruge de uma portada esquecida, de uma ripa do chão que se espreguiça, de uma porta que balança: de cá para lá; de lá, para cá: de cá para cá.
, completamente só, jaz o morto à meia luz de uma lua que se escapa por entre as frinchas da janela. O candeeiro, lá fora, antiquíssimo e belo, morreu há muito tempo, desgostoso. Não era a gargalhada estrondosa e cheia que fazia as paredes tremer, nem a cumplicidade sofrida ou a faculdade de doar que deixavam aquele cheiro. Não era o respeito, nem o silêncio construído a trinta e quatro mãos que pintavam, ainda no ar, cada nota do piano. Era o próprio ser. Era em si mesmo alegre, em si mesmo santo, em si mesmo dom. Perfeito...
Um retrato de uma mulher empedernida, em cima da lareira. Impenetrável. Espantosa. Se hoje alguém comungar do leve ruge ruge dos candelabros e reposteiros à moda passada, do cheio ao tempo que não passa (e que não traz rugas à fina procelana), e às longas bancadas de cozinha, olha-a e não a vê. Não sente, nunca, o podre morto jazido. Mas ela fica. Erigida muito acima das nuvens, a fortaleza permanece sempre. O morto, pura e simplesmente, desapareceu.

segunda-feira, outubro 18, 2010

Convicção.

Eu sou um jardim. Como tu.
Como todos os jardins, eu sou ar, fauna, chão e bichos pequeninos.
E há um jardineiro.
Viver no meu jardim, sê-lo...é uma escolha que faço todos os dias. E deixar que venha o jardineiro mais as suas tesouras e enxadas é uma outra escolha, que também faço todos os dias. Com convicção.
Tu não habitas os jardins do meu silêncio, mas eu conheço-te quando me conheço a mim, e ao meu jardineiro. Posso ser-te também, e assim dói-te menos. Eu só quero que tu floresças o Outono! O jardineiro existe sempre, ele leva as folhas. Vai-se esquecendo de uma, de outra, para que tu lhes ames a cor. E não te preocupes...ele existe mesmo. Com convicção.

quinta-feira, outubro 07, 2010

primeiro Outono

Não posso fingir que não tenho esta necessidade.
Há dias em que não dá para fingir que não és tu.
É o primeiro Outono. O meu cão, a minha cã, a Cusca não está cá.
Não está.
As gotas caem, os cabelos deixam de secar, a chuva chove, o Panic tem frio.
E o meu cão, a minha cã, a Cusca não está cá.
Os pés começam a enregelar, as pessoas puxam das camisolas (e como todos ficam tão mais bonitos, de camisola!), os ambientes tornam-se húmidos e ninguém abre as janelas para não chover cá dentro...
E o meu cão, a minha cã, a Cusca não está cá.
A minha cama já não está salpicada de pêlos brancos e pretos. Já não tenho aquele ser tão meu em cima dos meus pés, encostado às minhas pernas, abraçado na minha posição fetal.
As gotas caem, a chuva chove. Em breve chegam as trovoadas.
O meu cão, a minha cã, a Cusca...não existe.
Para nos ensinar que todos os Outonos são o primeiro.